O Caminho para a Consciência Crítica
Em alguns momentos, adotar-se-á o termo Karate-Do, ao invés de
simplesmente Karate. O sufixo Do foi
acrescentado por Gichin Funakoshi[1], fazendo
com que a Luta ganhasse um significado mais amplo:
Do, que significa um “caminho” ou “via”
para o aprimoramento pessoal, tem vida própria, quer seja o Do de Budo, “artes marciais”, ou o Do das várias outras artes.
Precisamente por ter vida própria é que está sujeito ao ciclo inevitável de
desenvolvimento e declínio. Ele está sempre mudando, mas só em sua forma
exterior sua natureza fundamental permanece imutável. Se o caminho atrai uma
pessoa para percorrê-lo, ele floresce; caso contrário, ele definha. O Caminho
do Karate pode ser chamado com justiça de um Budo que se manifesta de forma
nova e que busca zelosamente pessoas que por ele sigam (Funakoshi, 1988, pp. 11
e 12).
A partir desta mudança realizada por Funakoshi, as pessoas começaram a
ter outra relação com o Karate. Começaram a enxergar que o mesmo não era só uma
técnica de autodefesa, mas que poderia ser também “Um Modo de Vida”
(Funakoshi,1975). Quando se abre espaço para um novo paradigma, inevitavelmente
surgem a dúvida, a discussão e o questionamento diante da realidade
(Freire,1979). E é justamente por este diferencial filosófico-crítico, que se
faz urgente a mudança no que diz respeito ao trato com crianças.
Formulando-se uma hipótese sobre as causas do panorama atual, pode-se
imaginar que historicamente, cada pessoa que ia formando-se faixa preta (no
início do século XX), ao começar a ministrar suas aulas, de um modo geral,
apenas reproduziam o que lhes fora ensinado por seus Sensei[2](professor).
No início, o público principal que frequentava os Dojo[3],
era de adultos (homens na grande maioria). Com o tempo este público foi ficando
mais diversificado e os pais começaram a matricular seus filhos, para “gastar
energia” ou ainda, para “ganharem mais disciplina”. O problema se dá –
provavelmente - quando este público muda, mas a metodologia de aula continua a
mesma. Esta preocupação – em se ter um olhar diferenciado para o público
infantil – só deve ter começado a aparecer no momento em que alguns praticantes
de Karate se viram sob a necessidade de ter uma formação diferenciada, para
tornarem-se professores mais bem preparados[4].
Ainda assim, o fato do praticante cursar uma faculdade de Educação
Física, não garantiria que o mesmo tivesse uma consciência crítica diante da
sociedade (Barbosa, 2007). Muitas vezes – ainda hoje - o professor é formado em
Educação Física, mas continua apenas reproduzindo o que seu Sensei ensinou.
Deve-se buscar uma consciência crítica acerca da realidade que permeia
todo este universo da luta. E ao transpor essa realidade à criança, que seja de
forma única, como se a informação houvesse sido criada especialmente para
ela. Um professor que queira ministrar
suas aulas para crianças deve ter consciência de que a ludicidade é uma
estratégia fundamental e necessária – quase que obrigatória – para que sejam
respeitadas as características do educando. Mas como nos diz Paulo Freire, essa
tomada de consciência não é algo espontâneo. Há que se conquistar:
A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera
espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na
qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma
posição epistemológica. A conscientização é, neste sentido, um teste de
realidade. Quanto mais conscientização, mais se “desvela” a realidade, mais se
penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para
analisá-lo. Por esta mesma razão, a conscientização não consiste em “estar
frente à realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. A
conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação –
reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de
ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens. Por isso mesmo, a conscientização é um compromisso
histórico. É também consciência histórica: é inserção crítica na história,
implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo.
Exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes
oferece... A conscientização não está baseada sobre a consciência, de um lado,
e o mundo, de outro; por outra parte, não pretende uma separação. Ao contrário,
está baseada na relação consciência – mundo (Freire, 1979, p.15).
A partir desta tomada de
consciência, é possível vislumbrar mudanças realmente significativas no
processo ensino-aprendizagem.
Ensinar com Alegria
Ensinar
é um
exercício de imortalidade. De alguma forma
continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da
nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais... (Alves, 1994, p.3).
Algo muito importante para se
entender a dimensão do que trata este escrito, é ter consciência de que o
conteúdo Karate, é coadjuvante neste espetáculo. Ou seja: O Ator principal aqui
deve ser a criança (Sousa, 1985). Muitas vezes alunos são “moldados” para que
executem determinada técnica com perfeição, quando o ideal seria que a técnica
pudesse ser adaptada a cada criança que a experimentasse. Para que este
processo se dê de forma verdadeira, é fundamental que o professor esteja aberto
a ensinar com alegria:
Pois ser mestre é isso:
ensinar a felicidade. “Ah!”, retrucarão os professores, “a felicidade
não é a disciplina que ensino. Ensino ciências, ensino literatura, ensino
história, ensino matemática...” Mas será que vocês não percebem que essas
coisas que se chamam “disciplina’’, e que vocês devem ensinar, nada mais são
que taças multiformes coloridas, que devem estar cheias de alegria? Pois o que vocês ensinam não é um deleite para a alma? Se não fosse,
vocês não deveriam ensinar. E se é, então é preciso que aqueles que recebem os
seus alunos sintam prazer igual ao que vocês sentem. Se isso não acontecer,
vocês terão fracassado na sua missão, como a cozinheira que queria oferecer
prazer, mas a comida saiu salgada e queimada... O mestre nasce da exuberância
da felicidade. E, por isso mesmo, quando perguntados sobre a sua profissão, os
professores deveriam ter coragem para dar a absurda resposta: “Sou um pastor da
alegria...” Mas, e claro, somente os seus alunos poderão atestar da verdade da
sua declaração (Alves, 1994, pp. 7 e
8).
Acredita-se que através do jogo, da
brincadeira, do exercício adaptado ao lúdico, a criança desenvolve suas
potencialidades biopsicosociais de forma prazerosa, com alegria.
A Ludicidade
e o Educador
Educadores,
onde estarão? Em que covas terão se escondido? Professores, há aos milhares.
Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor.
Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce de um
grande amor, de uma grande esperança (Alves, 1984, p.11).
Partindo desta diferenciação feita por
Rubem Alves, torna-se mais simples tratar do tema ludicidade. Pois que para se
lidar com ludicidade, não há espaço para preocupações com desempenho técnico
perfeito, ou resultados em competições, ou quaisquer outras medidas exigidas
pelo sistema capitalista de consumo dos dias atuais (Barbosa, 2007). Há que se
ter um olhar mais sensível sobre o aluno. É necessário realmente ser um
educador:
“O educador (...), habita um mundo em que a
interioridade faz uma diferença, em que as pessoas se definem por suas visões,
paixões, esperanças e horizontes utópicos” (Alves, 1984, p. 14).
Permitir à criança a experiência lúdica,
ainda que em um espaço – o Dojo - em que se imagina que só caiba seriedade,
exercício, técnica e repetição, é permitir que ela seja criança em sua
essência. É permitir que se mostre ao mundo como ela é: seus sonhos, seu
imaginário, seu verdadeiro eu, ao invés de mostrar somente obediência,
disciplina e desempenho. Acredita-se que ao inserir o elemento ludicidade no
contexto da luta, além do aprendizado se dar de forma facilitada, contribui-se
ainda para que o aprendiz associe a atividade a algo prazeroso, divertido,
fazendo com que a mesma fique registrada em sua memória afetiva de forma
positiva (Stanislavski, 1976).
A Ludicidade, neste contexto, não se
realiza como meio de entretenimento gratuito, como fuga da realidade. Ao
contrário: serve para que se conheça mais a fundo o seu aluno. Para que se
vivencie a corporeidade em sua plenitude e tudo o mais que nela esteja inserido,
(Moreira, 2006). O educador então amplia ainda mais sua missão: Só ensinar o
Karate não basta. É preciso que o educador o faça respeitando a fase de
desenvolvimento em que seus alunos se encontram, suas particularidades enquanto
crianças, o contexto atual em que vivem, seus projetos e sonhos, enfim: Que ele
seja educador.
Considerações Finais
Não se propõe aqui a Ludicidade
como elemento alienado ou alienante da realidade (Freire, 1979), mas como
parceiro do conteúdo, como instrumento para um melhor entendimento e também
para que o aluno vivencie diferentes situações em vários aspectos: cognitivo,
psicomotor, afetivo e social.
Não se exclui também a
possibilidade da competição, porém, esta será colocada de outra forma pelo
professor: A competição aqui passa a ser um motivador, um dia de integração com
outros praticantes, onde se pode estimular o sentido da auto superação e até
mesmo de se saber como agir numa situação de estresse emocional. Sem a
obrigação neurótica com a vitória a todo custo, a competição se torna também um
instrumento pedagógico.
Que este trabalho possa provocar
uma reflexão sobre a importância de se lidar com a criança de maneira especial:
Com um olhar mais sensível, integral, ético e criativo. Que possamos
proporcionar aos educandos o melhor de nós mesmos, fazendo de nossas aulas
(sejam elas de Karate ou qualquer outra disciplina), um momento realmente
significativo.
O corpo é o lugar fantástico onde mora,
adormecido, um universo inteiro. Como na terra moram adormecidos os campos e
suas mil formas de beleza, e também as monótonas e previsíveis monoculturas;
como na lagarta mora adormecida uma borboleta, e na borboleta, uma lagarta;
como nos sapos moram príncipes e nos príncipes moram sapos(...) Tudo
adormecido... O que vai acordar é aquilo que a Palavra vai chamar. As Palavras
são entidades mágicas, potências feiticeiras, poderes bruxos que despertam os
mundos que jazem dentro dos nossos corpos, num estado de hibernação, como
sonhos. Nossos corpos são feitos de palavras... Assim, podemos ser príncipes ou
sapos, borboletas ou lagartas, campos selvagens ou monoculturas (...) os nossos
corpos, ao nascer, são um caos grávido de possibilidades, à espera da Palavra
que fará emergir, do seu silêncio, aquilo que ela invocou. Um infinito e
silencioso teclado que poderá tocar dissonâncias sem sentido, sambas de uma
nota só, ou sonatas e suas incontáveis variações... A este processo mágico pelo
qual a Palavra desperta os mundos adormecidos se dá o nome de educação.
Educadores são todos aqueles que têm este poder (Alves, 1994, pp.34 e 35).
Referências Bibliográficas
ALVES, Rubem – A Alegria de Ensinar – ARS Poética
Editora - 1994.
ALVES, Rubem – Conversas Com Quem Gosta de Ensinar – Cortez
Editora – São Paulo, SP – 1984.
BARBOSA,
Claudio Luis de Alvarenga – Educação Física Escolar: Da
Alienação
à Libertação –
Editora Vozes, Petrópolis, RJ – 2007.
BOAL,
Augusto – Jogos Para Atores e Não-Atores – Editora Civilização
Brasileira, Rio de janeiro, RJ – 1998.
BOAL,
Augusto – Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Políticas – Editora
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, RJ – 1980.
FREIRE,
Paulo – Conscientização: Teoria e Prática da Libertação;
Uma
Introdução ao Pensamento de Paulo Freire - Moraes, São Paulo-SP, 1979.
FREIRE,
Paulo – Pedagogia do Oprimido – Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro –
RJ, 1987.
FUNAKOSHI, Gichin – Karatê-Do Nyumon – Texto Introdutório
do
Mestre - Editora Cultrix , São Paulo - SP, 1988.
FUNAKOSHI, Gichin - Karatê-Do – O Meu Modo de Vida –
Editora
Cultrix, São Paulo, SP, 1975.
MOREIRA, Wagner Wei – Educação Física & Esportes –
Perspectivas
Para o Século XXI – Papirus Editora, Campinas, SP –
2006.
SOUSA, Herbert. Como se faz
Análise de Conjuntura: Vozes – Rio de
Janeiro, RJ - 1985.
STANISLAVSKI, Constantin – A
Preparação do Ator – Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, RJ –
1976.
VÁZQUEZ, Adolfo Sanchez – Filosofia da Práxis –
Editora Paz e Terra,
São Paulo, SP, 1990.
VELTE, Herbert - Dicionário Ilustrado de Budô – Artes
Marciais do
Oriente – Ediouro, Rio de Janeiro, RJ, 1981.
[1]
Gichin Funakoshi foi o professor que levou o Karate de Okinawa para Tóquio,
fazendo com que a Luta ganhasse muita visibilidade. Ele é considerado por todos
os praticantes, o “Pai do Karate Moderno”.
[2]
Por tratar-se de um termo de origem japonesa, não se aplica o plural como na
língua portuguesa, assim como as palavras ‘Kata” e “Dojo” (Velte, 1981).
[3]
Dojo é a sala onde se treina a luta japonesa de um modo geral: Karate, Judo,
Sumo, Aikido, dentre outras. Literalmente, Dojo significa “Local do Caminho”.
[4]
E aqui não vai nenhuma crítica específica àqueles que continuaram ministrando suas aulas sem ter a formação em
Educação Física. É apenas uma análise sobre a realidade do Karate em nosso país.
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